O aprendizado
e o desenvolvimento
da leitura e da escrita
ocorrem parte no cotidiano, no nosso dia-a-dia, e parte por meio de atividades sistemáticas na escola, com a utilização de reflexões sobre as práticas de nossa cultura e de outras culturas.
Trabalhar a leitura e a escrita de forma eficiente depende do desenvolvimento atividades que nos levem a praticar e refletir sobre as diferentes situações sociocomunicativas, os gêneros, as técnicas de leitura e escrita, dependendo dos objetivos e temas propostos.
Quando ensinamos-aprendemos dessa forma, desenvolvemos diferentes olhares sobre os nossos textos e os dos outros autores. O desenvolvimento das competências de leitura e escrita depende também da intervenção criativa, crítica e funcional do professor que planeja atividades e práticas de leitura e escrita que sejam prazerosas e significativas para os alunos.
Leia a seguir o depoimento de Patativa do Assaré quanto às suas práticas de leitura.
“Eu estudei só seis meses. Agora eu fui me valer do livro. Que não era o livro didático não. Eu não queria saber de categorias gramaticais não. Queria saber de outras coisas. Eu lia era revista, era livro, jornais. Eu queria era satisfazer minha curiosidade, não era ler gramaticalmente como vocês por aí não.
Neste globo terrestre
apresento os versos meus
porém eu só tive um mestre
e esse mestre é Deus.
Foi a natureza mesmo. Muito curioso para saber as coisas, tudo o que eu lia eu gravava aqui na mente. Eu queria era ler as histórias, a vida da pátria e isso e aquilo, queria saber das coisas, não queria saber de livro de concordância e isso e aquilo.
Agora, com essa prática de ler eu pude obter tudo, viu? Como se eu tivesse estudado pegado livros didáticos, livros lá de colegas, essas coisas, viu?
Eu aprendi lendo. Com a prática de ler a gente vai descobrindo e sabe que nem pode dizer: tu sois e nós é. Eu aprendi com a prática.”
Feitosa, T. (Org.). Patativa do Assaré – digo e não peço segredo. São Paulo: Escrituras, 2003.
Leia agora o depoimento de Paulo Freire, contando como aprendeu a escrever quando ainda criança.
“Eu costumava acompanhar, do portão da minha casa, de longe, a figura magra de“acendedor de lampiões” de minha rua, que vinha vindo, andar ritmado, vara iluminadora ao ombro, de lampião em lampião, dando luz à rua. Uma luz precária, mais precária do que a que tínhamos dentro de casa. Uma luz muito mais tomada pelas sombras do que iluminadora delas.
Não havia melhor clima para peraltices das almas do que aquele. Me lembro das noites em que, envolvido no meu próprio medo, esperava que o tempo passasse, que a noite se fosse, que a madrugada semiclareada viesse chegando, trazendo com ela o canto dos passarinhos “manhecedores”.
Os meus temores noturnos terminavam por me aguçar. Nas manhãs abertas, a percepção de um sem-número de ruídos que se perdiam na claridade e na algazarra dos dias e que eram misteriosamente sublinhados no silêncio das noites.
Na medida, porém, em que me fui tornando íntimo do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na “leitura” que dele ia fazendo, os meus temores iam diminuindo.
Mas, é importante dizer, a “leitura” do mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior de meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.”
Freire, P. A importância do ato de ler. São Paulo: Agir, 1996.
Há algo em comum nas duas experiências de leitura e escrita relatadas pelos dois autores. Percebemos que ambos eram letrados antes de serem alfabetizados. Já faziam uma leitura de mundo de acordo com a realidade em que viviam.
Nos defrontamos numa outra situação em que podemos fazer uma associação às avessas entre a concepção que o personagem Biá de Narradores de Javé tem a respeito do lápis e o poeta Leo Cunha estabelece com a caneta. Veja:
A mão do poeta
Poeta tem mão-de-obra.
Leo Cunha
Poeta tem mão de fada.
Quando ele escreve, a caneta
voa que nem borboleta,
vira vareta encantada.
Não é mais caneta, não,
é varinha de condão.
Tijolo aqui, laje cá,
cola a rima, tira a sobra,
encontra a palavra mágica.
Segura a letra, senão
ela cai na contramão!
Poeta é também mão-leve.
Rouba os sonhos infantis,
sem platéia nem juiz,
mistura num caldeirão
e ninguém diz que ele escreve
versos de segunda mão.
[…]
Ciência Hoje das crianças: 16 (135), 2003.
Muitos acreditam que ser escritor é um dom que a pessoa desenvolveria naturalmente e que, mesmo sem a intervenção de alguém, de um professor, escreveria bem.
Esse fato leva as pessoas a pensarem que somente aqueles que nasceram com essa vocação poderiam se tornar bons escritores de textos literários e/ou de outros textos.
Sendo um dom, vai se desvelando ao longo da vida como um novelo de lã. Essas formas de ver a vocação e o seu desenvolvimento podem levar a uma prática, na qual se acredita que cabe à escola apenas acalentar o gosto pela escrita, contribuindo com leituras e experiências em que o papel do professor se restringe a acompanhar o desenvolvimento a escrita enquanto o aluno estiver na escola.
Outras pessoas não acreditam na existência de um dom que se desenvolveria sem intervenção, mas que há pessoas que, por algum motivo, desenvolveram uma habilidade diferenciada, uma facilidade para escrever. São as circunstâncias de vida que geram motivações para que alguém goste de escrever e até se torne escritor(a). Se é assim, a escola, então, tem que dar todo o apoio e o trabalho de sala de aula deve ser motivador, criativo e processual no qual todos, mesmo sendo diferentes quanto ao domínio de habilidades e competências, possam aprender. Nesse ambiente, a interação entre o professor e os alunos e dos alunos entre si facilitaria a troca de saberes. A criança e o adolescente experimentam com a escrita, e o professor influencia, sobremaneira, o desenvolvimento dessa competência, acreditando que todos possam tomar gosto pela escrita.
Há, ainda, aqueles que acreditam no dom, mas que este deve ser despertado e desenvolvido com a contribuição da escola, que deveria oferecer todas as oportunidades para que aqueles que o tenham o desenvolvam sem maiores prejuízos.
Quatro hipóteses importantes que influenciam a pedagogia da
escrita, além daquela relacionando a existência do dom com a produção de boa escrita, já apresentada anteriormente.
1) A escrita é uma transcrição da fala.
Por muito tempo na história da escrita na humanidade, a escrita foi utilizada com a função de transcrever a fala. Também na nossa história pessoal, quando estamos trilhando as primeiras etapas da sua aprendizagem, a escrita funciona como uma forma de transcrição da oralidade. No entanto, com as transformações da sociedade, novas necessidades comunicativas surgiram, fazendo que a escrita fosse usada com funções diferentes da fala.
3) Todo bom leitor é um bom escritor.
Muitos pensam que, fazendo o aluno ler muito, naturalmente, ele desenvolverá a escrita. Sabe-se, no entanto, que, apesar de a leitura e a escrita serem processos relacionados, o aprendizado da escrita depende de uma boa orientação quanto às práticas de leitura dos diferentes gêneros na escola e, sobretudo, da prática da escrita em situações sociocomunicativas diversificadas. A leitura é uma prática necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento da escrita: aprende-se a escrever escrevendo.
4- Na escola escreve-se para produzir textos narrativos, descritivos e dissertativos.
Quando pensamos nas práticas de escrita na escola, pensamos em narração, descrição e dissertação. No entanto outros textos são importantes no nosso cotidiano; a documentação, por exemplo, tem função de possibilitar o registro e a permanência das informações para as futuras gerações.
Unidade 14 Seções 1 e 2
Os objetivos da leitura: expectativas e escolhas de texto
Objetivos que uma leitura pode ter. Lemos, entre muitos outros fins, para:
· obter informações gerais,
· obter uma informação precisa,
· aprender determinado tópico,
· analisar e comparar dados ou posições,
· devanear, ou evadir-se.
Tais objetivos é que definem não só a procura do texto a ser lido como também os procedimentos de leitura e a compreensão dele, além do empenho feito no ato de ler.
Na escola, uma questão fundamental a resolver é a dos objetivos de leitura dos alunos. O que eles lêem nos limites da escola quase sempre corresponde a objetivos de leitura do professor e da instituição escolar.
Sabemos que qualquer experiência na vida de uma pessoa tende a ter melhores resultados quanto mais ela atende a objetivos claros e verdadeiros para o sujeito que a vivencia. Com a leitura não é diferente: quanto mais ela tiver um objetivo para o aluno, mais ele vai buscar o material mais adequado, ou vai ler com mais disposição o que lhe é oferecido, e com mais facilidade vai compreendê-lo.

É essencial, pois, que o professor tente ajudar se aluno a desenvolver a consciência da importância, não só de ler, como também dos diferentes tipos de leitura. Isso não se consegue repetindo à exaustão o discurso de que “ler é preciso”, “ler é viajar”, “quem lê sabe mais”. O que nós, professores, temos de tentar a todo momento é conhecer os interesses dos alunos, ter clareza quanto ao que eles sabem e oferecer-lhe materiais e experiências de leitura capaz de mobilizá-los. Quer dizer: tornar a leitura verdadeiramente significativa implica criar nos alunos motivos para ler, ou, em outras palavras, ajudá-los a ter necessidade de ler.
Outra questão a sublinhar é a da leitura por prazer, ou distração, ou entretenimento. Em geral, achamos que lemos por prazer o texto de literatura, por sua falta de objetivos práticos, sua “inutilidade”, no dizer do poeta Manoel de Barros. É a leitura de lazer, a que buscamos para ocupar nosso tempo livre. Para nós, a literatura cumpre mesmo esse objetivo, e é bom que ela proporcione prazer.
Valendo-nos em parte de uma classificação de Foucambert, um dos maiores estudiosos das questões da leitura, podemos distinguir as seguintes formas de leitura, a partir de nossos objetivos:
a) uma leitura exploratória, quando procuramos um trecho, um dado específico de um texto: caracteriza-se por produzir-se em saltos.
b) uma leitura seletiva, quando o propósito do leitor é definir a organização do texto, ou definir sua idéia global, comparar elementos: caracteriza-se pela combinação da leitura rápida de alguns trechos e de leitura lenta de outros.
c) uma leitura informativa, quando se procura uma informação pontual, como um número de telefone no catálogo, uma palavra no dicionário: caracteriza-se por uma busca rápida, facilitada por conhecimentos específicos, como a ordem alfabética.
d) uma leitura para um conhecimento global e básico de um texto, longo ou não: caracteriza-se por ser uma leitura integral, mais comumente rápida.
e) uma leitura de fruição, buscando detalhes, desfrutando de aspectos de sua construção: caracteriza-se por ser lenta e, às vezes, pela releitura de partes.
Nosso desafio é ajudar os alunos a terem necessidade de ler, buscar com eles as razões verdadeiramente pessoais para saber alguma coisa, ou viver determinada experiência, por meio da leitura.
Conhecimentos prévios interferem na produção de significado do texto?
O conhecimento prévio é não somente o que o sujeito já sabe mas também o conjunto de valores que ele carrega pela vida afora, muitas vezes inconscientemente, em função dos mais diferentes tipos de experiências a que ele esteve e está exposto. Mais adiante, vamos observar isso, no estudo de um texto.
O que o sujeito já sabe, no caso da leitura, diz respeito:
a) primeiramente, ao conhecimento linguístico, seja com relação ao vocabulário, ou às estruturas da língua;
b) ao conteúdo do texto a ser lido: há assuntos de que conhecemos tão pouco, que nem temos como ver motivos para ler um texto sobre tais temas. Ou o assunto é tratado com tal profundidade, com uma linguagem tão técnica, que nós, não especialistas na área, não temos como “entrar no texto”. Ou já sabemos bastante coisa sobre o assunto, mas ele é tão fascinante para nós, que procuramos ler tudo que aparece em torno dele;
c) ao conhecimento sobre as características do gênero do texto, o que pode ajudar muito, também, na sua compreensão. Palavras, no título de um livro, como Tratado, Dicionário, Balada, Contos, já nos permitem fazer previsões sobre seus conteúdos.
Por sua vez, os valores que carregamos como resultados das diferentes aprendizagens surgidas das experiências constituem todos os nossos gostos, aversões, crenças, opiniões, princípios ideológicos e éticos, etc.
Narradores de Javé
Vestígios de letramento
A trama de Narradores de Javé se desenvolve no cenário do sertão nordestino, na Bahia, em um vilarejo de Gameleira da Lapa, às margens do Rio São Francisco.Dirigido por Eliane Caffé o filme discute questões ligadas à memória histórica e suas “verdades”, flutuando entre as tradições oral e escrita.
Em forma de “causo”, baseado na oralidade da história, Zaqueu, morador do antigo povoado faz a vez de “narrador no estilo arcaico”. O personagem conduz a narrativa utilizando o gênero memória. A memória do Vale de Javé se instaura nos eventos orais e é construída no embate das diferentes versões, além de haver o que se pode chamar de diálogo entre os três grandes gêneros literários na conceituação clássica: épico, em que predomina a objetividade, lírico no qual prevalece a subjetividade e o dramático, que os entrelaça.
Na história aparece o típico falar rincão brasileiro, retratado por várias expressões hilárias que Biá solta espantosamente: piaba de silicone, tapioca de Exu, clone de miolo de pão, omelete de cupim e outros, valorizando a diversidade lingüística.
Em face da ameaça de verem o lugarejo extinto pelo preço do progresso e grandes interesse por trás da modernidade, no caso da construção de uma usina hidrelétrica, os seus habitantes resolvem em assembleia, realizar um esforço “científico” de recuperação e escrita de suas grandes “histórias” do passado, na esperança de mostrar que o lugar é um patrimônio histórico a ser preservado e assim, evitar o seu desaparecimento. Surge então, a necessidade de um “salvador da pátria”, passando a partir daí, ser muito significativa a escolha de um escriba para realizar a tarefa de colocar no papel o memorial de Javé. A figura de Antônio Biá, com suas atitudes e falas contribuem para dar ênfase à sua tendência de escrivão, acrescentando ao seu trabalho fortes doses de imaginação ficcional.
A prerrogativa de ser alfabetizado é que determinou a alcunha de escriba ao ex-carteiro e a “intimidade” com as letras podem ser comprovadas em algumas cenas em que ele explica os motivos de sua preferência pelo lápis ( em detrimento da caneta, que corre solta e não permite arrependimentos) e defende o embelezamento das histórias contadas pelos moradores do vilarejo, mesmo que isso significasse uma completa transformação dos fatos supostamente ocorridos,fazendo uso versões bem “floreadas” e tendenciosas.
Com a incumbência de ouvir e fazer o registro das memórias do povo, Bia inicia sua odisséia. Esse gênero nos remete a algo de muito valor social, uma vez que a história só existe a partir da escrita, antes disso é só pré-história. Dessa forma, pode-se aferir que a escrita só assume seu valor real numa comunidade quando possui uma função social.
Alguns traços bem marcantes da oralidade podem ser identificados na cidade de Javé quando fazem uso do boca a boca, das palavras cantadas como forma de delimitar as extensões de terras. A linguagem coloquial reproduz termos típicos que simbolizam os integrantes das comunidades ribeirinhas e nesses espaços podem ser observadas produções de letramento e que também são carregados de vários efeitos de sentidos para o povoado, por meio de algumas situações letradas mesmo que com baixo grau de escolarização e ou nenhum nível de alfabetização. Exemplos disso são as paredes da casa de Antônio Biá, que eram todas escritas, com ditos populares, parlendas, piadas, frases como “aqui mora um intelectual alcoólatra” e durante todo o filme é na casa dele que aparece uma estante de livros.
Por outro lado, a escrita, para os moradores javélicos, nasce com certa finalidade, como se fosse uma arma para o combate com o opressor e para poder se falar com a língua dele. Isso demonstra que o primeiro motivo que leva a pessoa ou sociedade a se alfabetizar, geralmente é sua busca por poder ou sobrevivência.
Em se tratando da construção da oralidade e escrita, pode-se concluir que o professor, assim como o personagem Biá como escriba, tem papel importante enquanto mediador do conhecimento. Ele é o guia para os alunos, fazendo intervenções para ajudá-los, orientando-os passo a passo para que avancem à medida que lhes são oferecidos novos desafios, partindo sempre do conhecimento experiencial para novas proposições de ensino, para que os mesmos sejam sujeitos da história e agentes de transformação social no meio em que vivem.